terça-feira, 28 de setembro de 2010

Crônica - As armadilhas da memória

Em tempos de eleição, não pude deixar de postar essa crônica sobre as armadilhas da memória. Ela é de autoria de Moacyr Scliar, tendo sido publicada originalmente no livro "A face oculta", de sua autoria. Divirtam-se! "Funes , o memorioso, personagem de Jorge Luis Borges, tem um drama: não consegue esquecer. Como a memória de um computador, o seu cérebro registra tudo, obedientemente. Funes gostaria de dar à sua cabeça algum repouso, e esquecer, mas não pode — tem de lembrar.

Quase todos nós teríamos inveja de Funes — ou dos políticos, cuja memória é quase sempre privilegiada. Eu até diria que a memória faz o político, e não o contrário. Às vezes, é preciso recorrer a truques para manter a imagem de memorioso. Tancredo Neves, quando não lembrava o nome de um eleitor, abraçava-o e comandava-lhe baixinho ao ouvido: “Me diz o teu nome”. Em seguida, saudava-o, mas desta vez chamando-o, em alto e bom som, pelo nome antes esquecido. Um outro mineiro, José Maria Alkimin, uma vez dirigiu-se a um eleitor perguntando pelo pai. “Meu pai morreu há muito tempo”, foi a constrangida resposta. Ao que Alkimin replicou: “Morreu para ti, filho ingrato. Para mim, ele continua vivo”.

O fato é que as pessoas não perdoam ser esquecidas. O poeta Ferreira Gullar, que sofre de uma amnésia só comparável a seu talento, contou-me um par de histórias muito ilustrativas, ambas ocorridas em sessões de autógrafos. Na primeira delas, viu na fila dos autografandos alguém cujo nome ele deveria lembrar — mas não lembrava. A fila ia encurtando, e o homem se aproximando, sem que ele recordasse quem era. Em desespero, deixou a mesa dos autógrafos, atravessou correndo a rua, entrou no bar em que estava sua mulher e pediu-lhe que ela identificasse o leitor. O que ela, felizmente, fez (as mulheres são a salvação dos escritores desmemoriados). No segundo incidente, e talvez por estar sozinho, Ferreira Gullar já não teve tanta sorte. A sessão de autógrafos era em sua cidade natal, São Luiz do Maranhão, e ali, na fila, estava alguém muito importante para ele — o diretor de seu antigo jornal. Só que o poeta olvidara o nome desse cavalheiro e foi obrigado a confessá-lo em público. O homem mirou-o friamente e disse:

— Você não lembra agora, que ficou famoso. Quando você precisava de mim, não esquecia meu nome.

Qualquer escritor pode contar muitas histórias assim. E elas certamente faziam parte da experiência de Jorge Luis Borges. Que, pelo menos, tinha uma inescapável desculpa: cego, não era obrigado a recordar as pessoas.

Não é de admirar que muitas técnicas tenham sido desenvolvidas para estimular a memória. No início da era moderna, houve uma verdadeira mania mnemônica, segundo notou a historiadora inglesa Frances Yates. Ainda hoje não faltam nas prateleiras das livrarias, sobretudo norte-americanas, livros que ensinam a lembrar tudo, de rostos a nomes. Isso sem falar nos medicamentos que supostamente resolvem o problema (os fosfatos gozaram desta reputação por algum tempo). Mas o grande salto está sendo dado com o estudo do substrato anátomo-fisiológico da memória. Ali reside a grande esperança daqueles que não são o Funes ou políticos mineiros. É um desejo legítimo: queremos lembrar e queremos ser lembrados. “Read, do not let me die”, escreveu a poeta Edna St. Vincent Milay: leia-me, não me deixe morrer. O que nós dizemos é: lembrem-me, não me deixem morrer. A memória (dos outros) nos dá a ilusão da imortalidade. Agora, o que mesmo vamos fazer com a imortalidade? Deve haver uma resposta para essa pergunta, mas acho que ela está meio esquecida.

Moacyr Scliar

Um comentário:

Anderson disse...

Os artigos apresentados neste blog sempre são úteis. Parabéns pelo empenho. E aproveitando a oportunidade sugiro a leitura do artigo "Recordação autobiográfica: reconsiderando dados fenomenais e correlatos neurais" disponível no link http://pepsic.homolog.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1413-03942008000100004&script=sci_arttext
Grande abraço.

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